Quarta-feira, 30.11.11

#30 Fotografia

Plim. O micro-ondas chama Sara para jantar. A lasanha congelada está pronta. “Cinco minutos, nem mais um segundo”, como diz a embalagem. Não fossem estas maravilhas da cozinha moderna e já estaria anoréctica, por simples desleixo. Diz que a vida é curta e não a vale pena passá-la a preparar comida.

 

– Comprar feito é perfeito

Podia ser o slogan de uma marca de refeições rápidas, mas é a síntese do raciocínio de Sara a sair-lhe pela boca. O micro-ondas já a chamou segunda vez. Em casa dos pais não havia disto. Ao primeiro sinal tinha de estar sentada à mesa, senão o armagedão abatia-se sobre a sala. Agora é livre, o jantar que espere mais um pouco.

Sara está no quarto, a experimentar os trapos novos. Desaperta o vestido atrás do pescoço e deixa-o deslizar até ao chão. Passa um pé, depois o outro, sem o pisar. Pega no top azul turquesa, com duas flores brancas, simétricas. Ajusta-o ao corpo. Click, uma foto. Mais uma peça de roupa. Click, outra foto. A primeira vez de cada pedaço de tecido tem de ficar registada. É um ritual, uma mania que nasceu há muitos anos, quando lhe deram a primeira máquina fotográfica.

A lasanha já arrefeceu. Não faz mal, vai dar ao mesmo. Sara pega no prato, larga-o sobre a mesa da cozinha. Liga a televisão e come, sem desviar a atenção do ecrã. Acaba, despeja o prato no lava-louça. Desliga a televisão. Muda-se para a sala, atira o corpo para o sofá. Adormece.

A porta de mogno separa-o do motivo que o levou até ali. Ergue o braço e bate-lhe. Noc, noc, noc. Três vezes, como as pancadas de Molière. Noc, noc, noc. Três vezes, para afugentar o azar. Ele é actor sem palco, artista à procura da sorte. Na mão esquerda um ramo de flores, na direita a câmara profissional. Ela abre e assusta-se

– Eduardo, o que fazes aqui?

Ele larga-lhe o ramo nas mãos.

– São para ti.

Ela fecha os olhos e cheira. Ele pega na câmara e dispara. Aquela imagem ficar-lhe-á gravada na memória. A expressão serena numa cara resistente às rugas. O nariz em pulsação a absorver o perfume. Os olhos a abrir lentamente, como a acordar de um sono profundo. É a última recordação feliz que tem de Sara. A seguir vem o descalabro.

– Escuta o que vou dizer. Só o faço uma vez, percebes? U-ma vez! Não quero ver-te. Tiveste o teu tempo. Sabes lá quanto esperei, sofri, chorei. A tua volta ao mundo foi a minha travessia dos horrores. Primeiro temi pela tua vida. Tu nada dizias, não fazia ideia por onde andavas a fotografar, que riscos corrias. Podias já estar morto e eu ainda à tua espera. Depois pensei que me tinhas esquecido. Disseste que era um ano, entretanto passaram três. Voltaste a Portugal. Agora chegas aqui, como se nada fosse, e pensas que sou tua? Vai-te li-xar.

As sílabas saem-lhe mesmo assim, separadas. Tão separadas quanto eles estão neste momento. A porta fecha-se, é apenas um rectângulo de mogno, mas cava-se ali um fosso do tamanho do mundo que Eduardo percorreu nos últimos anos. Ele ainda não se mexeu. Pés em cima do tapete. Braços caídos, derrotados. A alça da câmara pendurada no ombro direito. As flores desfeitas, espalhadas pelo chão.

A porta reabre-se. No corpo de Eduardo renasce a esperança. Na mão de Sara está a máquina de fotografar trapos. Na cara de Eduardo espreita uma lágrima. Da câmara de Sara sai um flash. No olho de Eduardo encolhe-se a pupila, a gota de água salgada cai. A paixão que outrora os unira desaparece de vez.

É segunda-feira. Estação, comboio, estação. O caminho de todos os dias. Sara vem dos subúrbios para o centro, das extremidades para o coração da cidade. Hoje precisa de renovar o bilhete de identidade, já caducado. Mas não tem fotos tipo passe. Procura uma cabine, daquelas que prometem quatro, oito, dezasseis retratos em menos de nada. É incrível como tropeçamos nelas a toda a hora, excepto quando nos fazem falta.

Encontra uma, mesmo à saída da estação. Espreita pela cortina, esticada de uma ponta a outra. Não está lá ninguém. Entra. Senta-se no banco. Um euro, dois, três, quatro. Prepara o sorriso número 24. Repara numa mensagem, escrita à mão, letra de homem, colada por baixo do botão que está prestes a pressionar

“Não carregues, pára. Vais odiar essas fotos. Vais achar-te feia. Eu tenho a solução. Anda, estou cá fora à tua espera.”

e tira os dedos, sem carregar. Espera um minuto. Morde o lábio, ajeita o cabelo. Levanta-se. Com a mão esquerda afasta a cortina. De frente para ela está um homem. Mede-o de alto a baixo. Deve ser da idade dela. Pele branca, olhos verdes, cabelo castanho. Barba e bigode da mesma cor. Um casaco preto sobre uma camisa cinzenta. Umas calças azuis. Uns sapatos bege. Uma boca que se abre

– Vem comigo

para um pedido que é como uma ordem. Ela obedece. Uma rua a subir, outra a descer. Um prédio à esquerda. Porta abre, porta fecha. Junto às escadas um papel

“Em caso de perigo não use o elevador nem as escadas. Salte pela janela.”

obra de um miúdo. Outra porta. Um apartamento transformado em estúdio. Uma sala, mais outra, três salas. Um banco igual ao da cabine

– Senta-te ali

e ela ajeita-se ao lugar. Click, uma foto. Sem ensaios nem sorrisos forçados. Sem flashes nem lâmpadas, que ele não gosta de nada disso. A luz sai pelas faces de Sara e voa até à lente, chega à câmara, espalha-se pelo LCD. Um rectangulozinho com um rosto pálido mas belo. Ele fica convencido à primeira. Ela corre para ver o resultado, uma maravilha. Morde o lábio, ajeita o cabelo

– Como te chamas?

– Eduardo.

Amam-se nesse dia e no outro. No mês seguinte e no ano que vem depois. E mais, mais e mais. Não passam 24 horas sem se ver, sem se tocar, sem se fotografar. Ele entrega-lhe a sua primeira câmara digital, comprada com o primeiro emprego, seis anos antes

– Toma, é para ti. Aproveita. Mas segue este conselho: não uses o flash. Nunca. Quando o disparas matas a alma e destróis o coração de quem estás a fotografar

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Segunda-feira, 28.11.11

#28 Verbo

Duas cadeiras. Dois pratos. Dois copos. Dois pares de garfos. Dois pares de facas. Dois pares de colheres. Dois guardanapos. Uma frigideira. Um tacho. Um homem. Uma carne ressequida e reaquecida. Um arroz de cimento com bolinhas amarelas, outrora ervilhas verdes. Um homem. Uma toalha bordada. Um coração descosido.

 

Uma cama. Um cobertor. Dois lençóis. Duas almofadas. Uma enfermeira. Um médico. Uma mulher. Uma maternidade. Um parto forçado. Dois bebés. Quatro pés. Quatro pernas. Dois rabos. Duas barrigas. Quatro braços. Três mãos. E uma mulher. Um coração empenhado.

 

O amor. Um velho homem. Um serão a só. Mil serões a só. Uma vida ainda mais só desde aquilo. Um cancro. Um monstro numa alma tão bela. A destruição nela. A miséria nele. A rotina igual, as cadeiras e os pratos e os copos e os garfos e as facas e as colheres e os guardanapos e a frigideira e o tacho. E a carne e o arroz, sempre a mesma ementa.

 

O amor. Uma jovem mulher. Uma cama e dois berços. Uma obra perfeita e uma obra inacabada. Bochechas gordas e rosadas. Um nada diferentes. A mão, só aquela mão. Um tudo iguais. O amor, só aquele amor. Uma mulher, uma mãe, uma arca de afectos. Os olhares mesquinhos dos outros. As reacções indignadas dela. A emoção da razão na razão da emoção.

 

O encontro. O homem e três batas brancas à volta dele. Uma lista infindável de exames. Uma saúde resistente. Um adeus, um até à próxima, daqui a seis meses. Rua, um autocarro, um lugar à janela na zona vermelha, a zona reservada.

 

O encontro. A mulher e as lojas de roupa para bebé. Uma volta, duas voltas, três voltas. Um passeio caro mas necessário. Um carrinho para dois, agora também com camisolinhas e calcinhas e meiinhas e sapatinhos e tudo inho. Rua, um autocarro sem lugares vazios.

 

A ligação. O homem em pé. A mão no ombro da mulher. O lugar à janela, na zona vermelha, livre. O sorriso nela, o conforto pelo gesto nele. O choro nos bebés. A atenção dos passageiros no autocarro. O olhar dele. O cancro. O monstro. A destruição. O passado ali, no presente. Os gémeos dele, o cancro também neles. O cancro e o monstro e a destruição ainda maiores, a dobrar.

 

A ligação. A mulher no banco vermelho. O cuidado com os bebés. A ternura pelo velho homem de pé. A lembrança de outro velho homem, do pai. O exercício de imaginação e adivinhação na cabeça dela. O desenho do passado dele. Reformado do exército, um palpite distante da realidade. Ainda funcionário das finanças, na verdade.

 

O adeus. O homem com o dedo no botão. A luz do stop. Travagem, um desequilíbrio. Tudo normal outra vez. Portas abertas, pernas para fora do autocarro. Um aceno através do vidro. A cabeça no chão. Um pé, outro pé. O horizonte. O motor, o fumo, os pneus. O autocarro.

 

O adeus. A mulher com duas chupetas, uma para cada gémeo. O choro de um, o riso de outro. Uma sinfonia de emoções. As chupetas nas bocas. O silêncio. O homem de saída. Uma festa dela nele antes da travagem e do desequilíbrio e das portas abertas e das pernas fora. O aceno. A reacção dos bebés. Um de chupeta caída no colo, um soluço. O outro também sem chupeta, cinco dedos a abanar no ar de um lado, um pedaço de braço do outro, a primeira palavra pela boca

 

– Mão

 

para uma lágrima solta e um verbo conjugado na cara da mãe. Amo-te.

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Domingo, 27.11.11

#27 Confusão

Parque de estacionamento subterrâneo. Leonor procura um lugar para pôr o carro, enquanto come um chocolate

 

– Gosto tanto deste, ai este caramelo aqui no meio é tão bom

 

o amor da sua vida e fala ao telefone com uma amiga. No meio de tudo isto mal tem mãos para agarrar no volante e controlar a caixa de velocidades. Curva à esquerda, mais uma volta ao piso menos dois, não há lugares, toca a experimentar o menos três.

 

Um lugar para dois. Leonor de um lado, um homem de boina do outro. Ela atira-se de frente, ele faz marcha atrás. Pummmm. Os carros fundem-se, fazem amor perante os olhos indignados dos donos. O dela é um vermelho fogoso, o dele um cinzento clássico. Estão colados, Leonor também se cola no homem, mas para lhe gritar

 

– Já viu o que fez? Já viu o que fez? O lugar era meu!

 

numa voz fininha, mais fininha do que um fio de cabelo, pode ser preto, pode ser loiro, pode ser cinzento como também é o cabelo do homem da boina, que não se assusta com o tom.

 

– A menina tenha juízo. Eu vinha de marcha atrás, ninguém entra de frente num lugar destes. Tenha juízo, menina!

 

Um impasse. Nenhum abdicou do lugar, nenhum reconhece a culpa. Os carros, unidos, parecem mesmo apaixonados. O parque está cheio de Citroens e Peugeots e Fords e Renaults e Smarts e Opels e até BMWs e Mercedes e um Ferrari, guardado entre dois pilares. Ao lado está uma carroça velha, não é bem uma carroça mas mais parece, com dois rapazes. Estão numa zona com pouca luz, quase invisíveis. E neste momento também não há ninguém para reparar neles, só os acidentados, cada vez mais irritados.

 

– Olhe que eu chamo o meu marido!

 

é o grito de Leonor, a pensar no armário que tem em casa. Só lhe faltam as portas, é mesmo um armário, quadrado até mais não. O homem da boina, que já agora se chama Silvino, ignora a ameaça e tenta uma abordagem machista

 

– Ainda dizem que as mulheres sabem conduzir. Pffff. isto é uma vergonha, está aqui a prova de que é tudo mentira. Tudo mentira!

 

que só piora o filme. Os dois rapazes no carro fumam um charro até ao fim. O da esquerda para o da direita

 

– Esta cena é da boa. Mas agora temos de trabalhar

 

o da direita para o da esquerda

 

– ‘Tá-se bem

 

e abre a porta. Caminham com meio metro de distância um do outro. Leonor pega no telefone, a voz ainda mais fininha

 

– Amor, vem aqui ao shopping. Sim, eu sei que estás ocupado, mas preciso mesmo de ti! A sério, bebé! Um homem nojento bateu-me no carro e está a insultar-me. Vem rápido

 

sem reparar neles. Silvino está distraído a fazer contas ao prejuízo, coisa para passar dos mil euros, só para falar em peças. Uma pistola nas costas dela, outra na cabeça dele. A boina cai, deixa à vista uma clareira brilhante, desprotegida como ele e Leonor.

 

Ela de joelhos no chão. O da direita apalpa-a, mas não encontra o que quer. O da esquerda entretém-se com Silvino, encostado à parede. Espreita-lhe o casaco, sempre com a pistola apontada à cabeça, sem grande convicção. Os assaltantes olham-se, os acidentados trocam expressões de medo.

 

A revista continua até o ladrão encontrar o que quer. Um telemóvel e uma bolsa com jóias. O colega manda Silvino embora, que interrompe a união do vermelho com o cinzento e pisga-se o mais rápido que consegue. Há fumo a sair do escape a arrastar-se pelo chão. As pistolas afastam-se de Leonor com um aviso

 

– Fica aí quietinha

 

agora dava-lhes jeito o Ferrari, mas a fuga faz-se na carroça do lado. Entretanto chega Fernando, o armário de Leonor. Ela puxa outra vez dos agudos

 

– Meu Féfézinho, tive tanto medo!

 

e ele só vê um carro sozinho, perto de uma parede, imagina a cena, não havia homem nenhum, foi tudo invenção dela para não o irritar com mais uma azelhice. Um ataque de fúria, uma bofetada, já não é a primeira vez. Leonor no chão, a boina de Silvino caída ao lado dela. A polícia aparece, alertada para o assalto pelas câmaras de vigilância, e leva Fernando, o armário, Féfé para a namorada, fechado no carro azul e branco.

 

Leonor fica ali, de carro e cara amolgados, sem telemóvel nem jóias. Mesmo assim é feliz. Ainda tem metade do chocolate com caramelo.

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O projecto

Cada dia traz uma palavra nova. Com ela vem uma história. É uma proposta para um Novembro diferente.

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Novembro 2011

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