#02 Feriado

Mesa 3, bife com molho de mostarda para o rapaz dos óculos de massa. Mesa 8, bacalhau cozido e uma alheira frita para o casal cinquentão. Mesa 11, febras grelhadas e carne de porco à alentejana para os pombinhos pós-adolescentes. Mesa 16, bitoques para os cinco chineses. Falta a sopa para a criança da mesa 6, que a mãe – entretanto já almoçada – reclama há mais de dez minutos. Vítor Antunes vai a todas. Anota pedidos, serve bebidas, leva pratos, traz a conta.

 

É um autómato, faz isto há 32 anos, sempre no restaurante da praça, sempre no mesmo sítio. As outras empregadas, todas bem mais novas do que ele, tratam-no por Chefe. Não têm problemas em gritar do outro lado da sala

 

– Ó Cheeeeeeeeeefe! Venha cá!

 

E fazem-no tão alto que abafam a televisão, com o volume perto do máximo, para que ninguém perca as notícias ou a novela. Muito menos se ouve o ruminar do homem obeso, todos os dias na mesa do costume. Agora quer emagrecer, pede um grelhado e uma salada

 

– Estou no bom caminho, eu sei, senhor Antunes

 

mas depois estraga tudo, não abdica de uma mousse de chocolate.

 

O Chefe incha quando ouve as empregadas. O bigode arregala-se, adorna o sorriso. Pinta-o com as gotas de café ressequidas nos pêlos. Nestes momentos até disfarça o jeito tosco do qual não consegue livrar-se. Para chamar as colegas tem outra técnica: beijinhos. Os clientes riem-se, fixam os olhos nele quando ouvem o som dos lábios em comunhão. E o Chefe incha ainda mais, sente-se idolatrado.

 

O dia mais duro da carreira dá-se quando o presidente da câmara aparece ali para almoçar, com a mulher, num 1 de Novembro. Feriado, casa cheia, dezenas de pessoas para servir e logo aparece a maior figura da cidade. O povo adora-o, as senhoras mais velhas esquecem os maridos e lançam-se em suspiros. Os homens comentam a obra feita. Um jardim, um campo de futebol, um centro de saúde, as estradas todas alcatroadas, a praça principal arranjada. Temos consenso: um senhor deste gabarito merece uma estátua. Mas estamos em crise, já é uma sorte haver dinheiro para comer fora no feriado, o monumento fica para depois.

 

O povo delicia-se. Apertos de mão para os senhores, beijinhos às senhoras. Ao longe, o Chefe rói-se de inveja. Tomam-lhe o palco de assalto, roubam-lhe o protagonismo. Ainda por cima com a arma dele, os beijinhos. Os clientes da casa viram a cabeça, pensam que o Chefe chama as empregadas, têm o riso à porta. As empregadas também arrancam em falso na direcção dele, até que percebem: afinal é o presidente da câmara.

 

Vítor Antunes não se endireita o resto do almoço. Deixa cair pratos. Já nem se ouvem beijinhos. Engana-se nas facturas. Responde torto à clientela. O presidente chama-o

 

– Pode trazer-me um café com cheirinho, por favor?

 

e ele acena com a cabeça. Parece uma seta, disparada a caminho da máquina. Pummm, tshhh, brrrrrr, o café começa pingar, depois cai com maior vigor. Chávena cheia, só falta o cheirinho. O Chefe deita umas gotas de bagaço, mas não fica por aí. Abre uma gaveta, pega numa caixa e dela tira um comprimido, que logo desfaz no café.

 

– Aqui tem, senhor presidente.

 

Afasta-se. Vai até à cozinha, onde há muito guarda uma garrafa de uísque. Sem ninguém ver, enche um copo e bebe de um trago. Ao mesmo tempo, na sala de refeições, o presidente dá um salto e corre em direcção à casa-de-banho. Passam 20 minutos, até que volta a sair, meio roxo, meio vermelho, agarrado à barriga. Com a indisposição dá-lhe para gritar

 

– Ó cheeeefeeee!

 

Sem se lembrar que por ali esse é o título honorífico de Vítor Antunes, o empregado que vai a todas. E que aparece num ápice.

 

– Traga-me a conta, por favor! Estou com muita pressa! Preciso de ir já embora!

– Excelentíssimo senhor presidente, ora essa! O almoço fica por conta da casa e não se fala mais nisso. Foi uma honra e um prazer tê-lo por aqui. Estava tudo bom? Aposto que sim, claro, a nossa cozinheira é um anjo. Ahh, e espero que regresse em breve!

 

Faz-lhe uma vénia e logo volta ao pingue-pongue entre mesas. O presidente olha para a mulher e acena em direcção à porta. Levantam-se, ele de braços colados à barriga, ela a ajeitar o casaco de peles. Ele lança-se em direcção à porta, ela segue-o a passo lento. Ouvem-se beijinhos, mas não é o presidente, que agora ignora o povo, tem outras preocupações. É o Chefe, de volta ao trono, a chamar as empregadas.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar