#27 Confusão
Parque de estacionamento subterrâneo. Leonor procura um lugar para pôr o carro, enquanto come um chocolate
– Gosto tanto deste, ai este caramelo aqui no meio é tão bom
o amor da sua vida e fala ao telefone com uma amiga. No meio de tudo isto mal tem mãos para agarrar no volante e controlar a caixa de velocidades. Curva à esquerda, mais uma volta ao piso menos dois, não há lugares, toca a experimentar o menos três.
Um lugar para dois. Leonor de um lado, um homem de boina do outro. Ela atira-se de frente, ele faz marcha atrás. Pummmm. Os carros fundem-se, fazem amor perante os olhos indignados dos donos. O dela é um vermelho fogoso, o dele um cinzento clássico. Estão colados, Leonor também se cola no homem, mas para lhe gritar
– Já viu o que fez? Já viu o que fez? O lugar era meu!
numa voz fininha, mais fininha do que um fio de cabelo, pode ser preto, pode ser loiro, pode ser cinzento como também é o cabelo do homem da boina, que não se assusta com o tom.
– A menina tenha juízo. Eu vinha de marcha atrás, ninguém entra de frente num lugar destes. Tenha juízo, menina!
Um impasse. Nenhum abdicou do lugar, nenhum reconhece a culpa. Os carros, unidos, parecem mesmo apaixonados. O parque está cheio de Citroens e Peugeots e Fords e Renaults e Smarts e Opels e até BMWs e Mercedes e um Ferrari, guardado entre dois pilares. Ao lado está uma carroça velha, não é bem uma carroça mas mais parece, com dois rapazes. Estão numa zona com pouca luz, quase invisíveis. E neste momento também não há ninguém para reparar neles, só os acidentados, cada vez mais irritados.
– Olhe que eu chamo o meu marido!
é o grito de Leonor, a pensar no armário que tem em casa. Só lhe faltam as portas, é mesmo um armário, quadrado até mais não. O homem da boina, que já agora se chama Silvino, ignora a ameaça e tenta uma abordagem machista
– Ainda dizem que as mulheres sabem conduzir. Pffff. isto é uma vergonha, está aqui a prova de que é tudo mentira. Tudo mentira!
que só piora o filme. Os dois rapazes no carro fumam um charro até ao fim. O da esquerda para o da direita
– Esta cena é da boa. Mas agora temos de trabalhar
o da direita para o da esquerda
– ‘Tá-se bem
e abre a porta. Caminham com meio metro de distância um do outro. Leonor pega no telefone, a voz ainda mais fininha
– Amor, vem aqui ao shopping. Sim, eu sei que estás ocupado, mas preciso mesmo de ti! A sério, bebé! Um homem nojento bateu-me no carro e está a insultar-me. Vem rápido
sem reparar neles. Silvino está distraído a fazer contas ao prejuízo, coisa para passar dos mil euros, só para falar em peças. Uma pistola nas costas dela, outra na cabeça dele. A boina cai, deixa à vista uma clareira brilhante, desprotegida como ele e Leonor.
Ela de joelhos no chão. O da direita apalpa-a, mas não encontra o que quer. O da esquerda entretém-se com Silvino, encostado à parede. Espreita-lhe o casaco, sempre com a pistola apontada à cabeça, sem grande convicção. Os assaltantes olham-se, os acidentados trocam expressões de medo.
A revista continua até o ladrão encontrar o que quer. Um telemóvel e uma bolsa com jóias. O colega manda Silvino embora, que interrompe a união do vermelho com o cinzento e pisga-se o mais rápido que consegue. Há fumo a sair do escape a arrastar-se pelo chão. As pistolas afastam-se de Leonor com um aviso
– Fica aí quietinha
agora dava-lhes jeito o Ferrari, mas a fuga faz-se na carroça do lado. Entretanto chega Fernando, o armário de Leonor. Ela puxa outra vez dos agudos
– Meu Féfézinho, tive tanto medo!
e ele só vê um carro sozinho, perto de uma parede, imagina a cena, não havia homem nenhum, foi tudo invenção dela para não o irritar com mais uma azelhice. Um ataque de fúria, uma bofetada, já não é a primeira vez. Leonor no chão, a boina de Silvino caída ao lado dela. A polícia aparece, alertada para o assalto pelas câmaras de vigilância, e leva Fernando, o armário, Féfé para a namorada, fechado no carro azul e branco.
Leonor fica ali, de carro e cara amolgados, sem telemóvel nem jóias. Mesmo assim é feliz. Ainda tem metade do chocolate com caramelo.