#25 Sorriso

As bocas estão cosidas sem linha. A voz sai por onde entra a dos outros. O ar só circula de narina em narina. Nem a alimentação serve de pretexto, os nutrientes chegam ao corpo pelas veias, por injecção ou transfusão.

 

– O decreto é para cumprir

 

insiste o governo. Faz cinco horas que entrou em vigor. As imposições são duras, ninguém esperava uma posição tão extremista. Os especialistas previam um corte de sessenta a oitenta por cento, nunca total, nunca de cem por cento. De nada valeu o esforço dos sindicatos

 

– É um direito dos trabalhadores em particular e de todos os portugueses no geral!

 

ao longo dos últimos meses. De nada valeram as manifestações das gerações mais jovens

 

– Querem roubar-nos uma liberdade conquistada pelos nossos pais com o 25 de Abril

 

tão crentes e tão ingénuos e tão seguros e tão vítimas. São eles quem mais sofre, quem mais se vê privado de um bem essencial na flor da idade. Uma flor que já não abrirá da mesma forma, agora murcha, agora definha, até ser um nada do que foi.

 

O governo proibiu o povo de sorrir. Quem for apanhado a fazê-lo segue directo para a prisão sem passar pelo tribunal. As penas vão dos vinte cinco aos cinquenta anos, o tempo acabará com os sorrisos que restarem aos condenados. É um processo em curso, uma imposição a alastrar-se como um vírus.

 

Por enquanto não chega a todo o lado. No interior ainda se abre a cara ao nascer do sol, a uma riqueza natural que não tem preço. Às escondidas, nas cidades, casais de namorados trocam juras de sorrisos eternos. Entregam o último

 

– Toma, como prova do meu amor

 

antes que a boca se cosa casam-na num compromisso de fidelidade. Nas ruas já se mata por um sorriso, mas o homicídio passou a crime menor, a polícia preocupa-se mais em apanhar quem não respeita a nova lei. A publicidade desaparece quase por completo, primeiro são os anúncios de pasta de dentes, depois tudo onde apareça gente feliz. Na televisão só passa o drama, o cru, o cinzento, até o preto, sobretudo quando há cortes na programação.

 

O mercado paralelo inflaciona-se. Os sorrisos vendem-se mais caro do que qualquer matéria-prima. Um sorriso vale ouro, mais que isso. Há quem pague notas e notas e mais notas e ainda mais notas em troca de um pedaço invisível de alegria. Quem tem sorrisos para dar e ninguém com quem gastar faz fortuna assim.

 

 

Ao fim de doze horas o país fecha de vez. Quem quer continuar a sorrir emigra. As pessoas azedam, as relações amargam. Nas discussões revela-se o lado mais áspero que há em cada um. Os olhos são de cachorros abandonados ou de leões em fúria. O meio termo não existe, acabou. O prazer não é prazer, parece obrigação, tudo é frio, até a carne dos corpos.

 

A produtividade cai a pique. Os bebés já não querem nascer, as mães carregam-nos meses a fio para lá do que é suposto. Na escola ninguém aprende, ninguém brinca. Aviões cheios de turistas entram no espaço aéreo português e voltam para trás logo que sentem o peso do ar. É assim até não haver mais turistas, até não haver mais aviões.

 

Tensão, conflito, revolta. Um grupo de jovens maçons reúne-se numa loja para discutir a situação

 

– Este governo está a ir longe de mais

 

conclusão dita e redita ao longo da noite. É hora de agir. Um plano para reverter a proibição. Um bode expiatório. Data, hora, local.

 

Meio ano depois, o primeiro-ministro faz uma declaração ao país, em São Bento. Pose de estadista, sem teleponto, tudo de improviso

 

– Portuguesas e portugueses

 

uma pausa, um piscar de olhos mais demorado. Quando as pálpebras se erguem e ele se prepara para continuar aparece um vulto na imagem. E o povo a ver em directo. Agarra no primeiro-ministro, os seguranças cumpliciam-se, nem se mexem. E o povo a ver em directo. Com uma faca, a figura sem rosto rasga-lhe um sorriso forçado. Amarra-o à cadeira. E o povo a ver em directo. Põe-se em frente à câmara, sem abrir a boca, e mostra um papel

 

“Acabou”

 

que o povo vê em directo. Nunca tanta gente sorriu ao mesmo tempo em Portugal.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar