#22 Casa

Uma carrinha que não serve para andar tem uma imagem de um engravatado em pose, sorriso largo

 

– Fale comigo

 

e o número de telemóvel ao lado, para os interessados. Parece um homem sozinho, desapoiado, a precisar de companhia. Chama-se José Ferreira, o nome vem por cima do contacto.

 

– Prazer em conhecê-lo. Como está?

 

Quanto mais conversa tiver melhor José andará na vida. Quando alguém lhe telefona pela primeira vez recebe o discurso ensaiado

 

– Aqui na Casa a Casa fazemos tudo para agradar. Diga o que quer, nós damos-lhe o que precisa

 

que soa a pretensão desmedida para quem depende da confiança dos outros. Renato desliga a chamada, fica a olhar para o ecrã do telemóvel. José convenceu-o a uma visita a um T3.

 

Hora do encontro, Renato e José no sítio combinado. Um prédio antigo, fachada a pedir pintura, uma porta a clamar por óleo. No hall um carrinho sem bebé. As caixas de correio à esquerda, um painel com anúncios do condomínio à direita. Escadas ou elevador, José escolhe os degraus, Renato não questiona. Segundo andar, prestes a entrar no apartamento, aparece uma vizinha

 

– Onde é que os senhores vão?

 

baixinha e corcunda. Levanta bem a cabeça para o nariz não apontar ao chão. Pendurado ao pescoço traz um avental, bem maior do que ela, que mesmo leve parece curvá-la ainda mais. Dois dedos no queixo a coçar os pequenos pêlos grisalhos. A dúvida nos olhos, a certeza na voz

 

Os senhores não podem entrar aí

 

de quem ali vive há trinta e um anos, desde o dia em que voltou de Angola com o marido e os três filhos. Renato desorientado, José assustado. A vizinha insiste nas palavras, que saem como correntes a impedir que

 

Os senhores

 

como teima em interpelá-los, num tom mais carregado, entrem de vez. A mão do queixo vai ao bolso do avental e tira um papel dobrado, escrito à mão e misturado com migalhas de pão

 

– Recebi instruções para não deixar entrar nenhum dos senhores. O senhor Brito de Melo fez questão de indicar isso mesmo neste documento.

 

Olha para José, leva a outra mão aos pêlos do queixo e

 

– Sobretudo o senhor da imobiliária

 

que entretanto opta por ignorá-la e roda a chave. Crrrrrrrrrr, iééééééééééum, pummm. Porta aberta. O silêncio numa nuvem de pó que só faz barulho ao aterrar nos narizes e nos olhos de José

 

– Atchiiiimmmm

 

de Renato

 

– Aaaaaaaatchiim

 

e da vizinha

 

– A-a-a-a-a-a-a-a-a-a-tchim

 

que quase sufoca antes de o espirro sair. A porta estivera fechada nos últimos dois anos, para sossego da zelosa vizinha.

 

A casa pertencera a Tomás Brito de Melo, emigrante português com negócios em África, que morreu num safari, atacado por dois leões. O apartamento ficou para o filho. Guilherme aproveitou o espaço para noites de festa e pequenos negócios até conhecer uma modelo russa, casar e nunca mais lá voltar. Decidiu pô-lo à venda

 

– Aqui na Casa a Casa fazemos tudo para agradar. Diga o que quer, nós damos-lhe o que precisa

 

responderam-lhe ao telefone. Ao mesmo tempo entregou um papel à vizinha. Ela, doméstica reformada, guardou-o como missão de vida.

 

– Eiiiiiiiii! Os senhores não podem entrar!

 

Já José entra e Renato segue logo atrás. Não há lixo nem ratos nem baratas. Apenas um cheiro estranho, não é gás, não é podre, não é a canalização. O chão de madeira escorregadio, sinuoso. O passo firme de José e os cuidados de Renato, que mesmo assim vê fugir o pé e cai de cabeça. José em pânico

 

– Fale comigo

 

como na carrinha que não serve para andar onde aparece engravatado a sorrir. Agora não sorri, só pensa na desgraça

 

“Um cliente a magoar-se numa visita, não pode, não pode, não pode ser”

 

de mais um dia falhado. Renato, atordoado, pisca os olhos mas não o corpo. A vizinha à porta

 

– Eh eh eh, eu avisei!

 

e José às voltas de mãos na cabeça. Imagina-se despedido, sem fotografia espalhada pela cidade, sem comissões, sem dinheiro.

 

– Fale comigo

 

agacha-se junto a Renato, de volta a si, um galo na nuca, um par de palavras

 

– Quero esta

 

que fazem saltar José e a vizinha, um de alegria, a outra de desespero

 

– Mas... mas... mas... a casa ia ficar para mim. Bastava que passasse mais um mês e era minha. Está no testamento do senhor Brito de Melo.

 

e vai-se embora, nariz apontado ao chão, avental a vergar a corcunda e dois dedos no queixo a coçar os pequenos pêlos grisalhos.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar