#21 Escuro

A vareta a cantar para a vela no bolo de aniversário. Ffffffffffffffff. E lança faíscas no ar, enquanto o pai e a mãe e os avós e a vizinha e as amigas e até o cão lançam notas desafinadas que quase apagam a chama. A aniversariante debruçada, à espera do momento final

 

– ... para a menina Miriam uma salva de palmas

 

Fuuuuuuuuu. A adulta de treze anos sopra e deixa a sala às escuras. Assim ninguém vê os azulejos azuis, escolhidos pela mãe, que tanto azucrinou o juízo ao pai. Por segundos são todos cegos, guiam-se pelo som das palmas e dos berros, pelo cheiro a queimado da vela e da vareta.

 

A luz do candeeiro cresce pela sala. Os olhos contraem-se, formam-se caretas, alguém devia estar a fotografar ou a filmar isto para que todos pudessem ver. É pena, esqueci-me de carregar a bateria da máquina e por mais que levante o telemóvel e o aponte para eles só consigo gravar isto na minha cabeça.

 

A Miriam é a minha irmã mais nova. Por isso já sabem que tenho mais de treze anos. Ainda me lembro do dia em que ela nasceu. Não vi nada, estava na escola, só soube o que aconteceu ao fim da tarde, quando cheguei a casa.

 

– A mana já nasceu

 

contou-me a avó, parecia um pavão de braços abertos para depois me agarrar e apertar e quase esborrachar. Senti as bochechas no peito dela, o coração a bater perto de mim. Estava acelerado, tão acelerado que rebentou e parou ali mesmo.

 

O dia em que a minha irmã nasceu foi o dia em que perdi a minha primeira avó, o dia em que vi alguém morrer pela primeira vez. Foi também o dia em que decidi ser médico, para evitar que isto voltasse a acontecer. Hoje vejo gente morrer a toda a hora, por mais que me esforce.

 

Já me habituei. Não é que não faça diferença, porque ainda hoje me obrigo a acender uma vela na capela do hospital por cada pessoa que vejo fechar os olhos. Outro dia foi a vigésima primeira em três anos. Era uma menina, da idade da minha irmã

 

– Quando for grande quero casar com o doutor

 

dizia ela, muito vermelha. O doutor era eu. Fazia caretas, como as do aniversário da Miriam, quando a enfermeira passava para mais uma dose de medicação. Depois sorria

 

– Onde está o doutor?

 

perguntava ela, muito pálida. O doutor era eu. Não podia fazer nada senão aparecer e estar ali. Ainda sou um aprendiz e a doença dela não tinha cura. Outro dia avisaram-me de que estava às portas da escuridão.

 

– O doutor?

 

suplicava ela, já sem cor. O doutor era eu. Teria casado com ela naquele segundo. No fim acendi uma vela que lhe devolveu por mais um pouco uma vida simbólica.

 

Não gosto do escuro. À noite, na cama, passam horas até adormecer. O negro é o vazio, imagino-me a morrer. A luz a descer, cada vez mais pequena, como antes do

 

– Pa-ra-béns a vo-cê, nes-ta da-ta queeee-riiii-da

 

até o peso das pálpebras fechar os olhos a cadeado. Nesse dia a luz não volta. Não há caretas que valham uma foto ou um vídeo. Os mortos não têm expressão. Nesse dia vou e não volto. À noite, na cama, digo baixinho

 

– Não quero morrer, não posso morrer, não quero morrer, não posso morrer, não quero morrer, não posso morrer

 

e perco-me no escuro e fecho os olhos e adormeço. No dia seguinte a luz sobe e ressuscito.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar