#20 Vitória

Quatro cabeças abanam dentro de um carro, empurradas e puxadas pelas rimas que explodem das seis colunas. Um lenço na cabeça do condutor, um dente de ouro a espreitar pelo canto da boca, uma tatuagem no braço

 

"numb€r on€"

 

e uma cruz ao pescoço, com uma fotografia de uma mulher colada na parte de trás. Ao lado um homem com tranças que lhe vestem todo o tronco. Por baixo da floresta mal se nota um blazer preto com linhas brancas, uma pequena inscrição junto ao bolso

 

"be the one"

 

cosida, à mão, pela falta de jeito dele. No banco de trás, a guardar-lhe as costas, um boné de pano aos quadrados acompanha uma camisola de lã aos losangos e umas calças de bombazine às riscas num corpo que é como um círculo a ocupar dois lugares e a esconder os sapatos de uma marca famosa

 

"O-O, only one"

 

criada pelo que está à sua esquerda. É um pugilista de robe e luvas, vivido e viajado pelos combates, a caminho de mais um

 

"the one"

 

na verdade o mais importante da carreira. Em jogo estão todos os títulos da categoria e um prémio que chega para pagar o resto da vida. Os outros três vivem às custas dele, são a equipa, os empregados, fazem o que for preciso para que esteja tudo perfeito, para que ganhe sempre. À espera, no pavilhão, já tem uma travessa de fruta, com bananas e maçãs e peras e morangos e uvas e laranjas

 

– Não se esqueçaram dos quivis, pois não?

 

e quivis, sim. Estão também duas pizzas sem queijo, por causa da alergia. E um acessório essencial: uma câmara de filmar. Antes dos combates filma sempre uma declaração. Um minuto, contado ao segundo, nem mais nem menos, para mostrar ao mundo caso morra no ringue.

 

O ritual diz muito dele. O medo funde-se com a confiança que grava de frente para a lente

 

"don't forget i was the one"

 

são as últimas palavras, não há vez que não termine assim. Hoje foi igual, logo depois de comer a travessa de fruta e as duas pizzas. Se a câmara lhe fizesse zoom nos dentes até daria para ver um pequeno fio de banana, uma semente de quivi e uma migalha de pizza.

 

Está na hora do combate. O robe e as luvas, os pés descalços e a cabeça despida. Balneário, túnel, ringue. O árbitro, fato axadrezado, espera por ele. Falta o adversário. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Não aparece. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Ninguém o viu. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Falta de comparência. Os títulos e o dinheiro. A gravação pode ir para o lixo.

 

Outra vez o carro. Outra vez as quatro cabeças a abanar. Todos com a mesma roupa, menos o pugilista, que já largou o robe e as luvas, já se vestiu e já se calçou. Há champanhe. Há uma quinta cabeça no carro, no porta-bagagens, mas essa já não abana.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar