#19 Inocência

Inocência tinha um homem. Não era bem um namorado, não era bem um marido. Era um homem, para o que desse e viesse. Inocência é uma mulher dura, crescida no pasto, bruta como a paisagem que melhor conhece. Não gosta de falinhas mansas, não vai em cantigas. Na terra tem uma frase famosa

 

– A mim ninguém põe a pata em cima

 

e quando diz isto cerra o punho. Se houver uma mesa, um banco, uma árvore, é mulher para lhe dar um murro só para reforçar a intenção das palavras. Um dia falhou o alvo e acertou sem querer numa comadre. A força foi tanta que lhe partiu o nariz. A outra

 

– Ai, meu Deus, que desgraça

 

enquanto entrava no carro do irmão para ir ao centro de saúde, com um pano na cara para estancar o sangue. Inocência ficou calada ao vê-la desaparecer atrás das casas da aldeia. A seguir falou

 

– Que chatice. Não sabia que era tão frágil

 

e fez um som com a língua colada ao céu da boca, como quem encolhe os ombros e diz

 

– A culpa não foi minha.

 

A do nariz partido nunca mais se aproximou dela. As comadres também começaram a fugir. Na cabeça delas soava um alerta

 

– Sabe-se lá quando vai sobrar para nós

 

e Inocência sozinha na aldeia, só com o homem que não era bem namorado, não era bem marido. Passou a estar sempre com ele, carroça para a frente, carroça para trás.

 

Inocência não é só pedra, também sente. E no início sofreu um pouco por perder a companhia das comadres. Foram dez minutos complicados. Depois já não queria saber

 

– Se não me falam, tanto me faz. Elas é que perdem

 

e dedicou-se por completo ao homem. Ou melhor, dedicou-se a dar cabo dele. Ele, coitado, franzino, tremia de medo perante uma mulher tão grande. Tinha a resposta na ponta da língua

 

– Sim, senhora

 

pronta a servir qualquer pergunta. Ela pedia um copo de água, ele ia buscar. Ela falava em vacas e porcos e ovelhas e cabras e patos e galinhas e perus e lá ia ele fazer a ronda sem protestar.

 

Inocência aproveitava a folga, esticava as pernas e bebia um copo de licor. Quando o homem aparecia vinha mais franzino, tremia a dobrar, agora não de medo mas de exaustão. E ainda faltavam os cães e os gatos e os coelhos e os cavalos e os burros e um javali

 

– O meu querido Tobias

 

mais parecia um ser humano, tal era o tratamento que Inocência lhe dava. Tobias dormia isolado dos outros, numa espécie de suite real entre currais e estábulos. Era o rei da quinta. À noite chorava para que lhe abrissem a porta e lá ia o homem resolver o assunto. Tobias saía para um passeio e um banho de lama. Enquanto isso o homem repetia a ronda. Vacas e porcos e ovelhas e cabras e patos e galinhas e perus. Cães e gatos e coelhos e cavalos e burros. Quando regressava encontrava sempre Tobias enlameado e feliz. Até ontem. Tobias saiu e não mais voltou.

 

Inocência tinha um homem. Não era bem um namorado, não era bem um marido. Era um homem, para o que desse e viesse, que agora está amarrado ao pelourinho da aldeia, franzino, sem roupa nem dignidade e com o corpo mutilado. Inocência reclama inocência.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar