#16 Tempo

Um centro comercial com quatro pisos. O Daniel sabe o que quer, vai logo ao último: livros e música. De que mais precisa para ser feliz?

 

– Nada

 

confirmou-me um dia. Uma biografia de um político famoso, um manual de jardinagem, um romance do século dezoito. Um álbum dos Beatles, um vinil dos Rolling Stones, um dêvêdê de Bruce Springsteen. É tudo por hoje.

 

Caixa, cartão multibanco, talão e um

 

– Obrigado, até à próxima.

 

Perto da saída um ecrã com a maçã de Jobs, onde passam trailers de um festival de cinema. Dois metros à frente duas poltronas. O Daniel aproveita e senta-se, telemóvel na mão, a enviar-me uma mensagem

 

– Olá, como estás? Aposto que bem. Um copo amanhã à noite?

 

à qual respondo sim, nunca digo não ao Daniel. É difícil resistir-lhe, aquele olhar de homem vivido, apetece ouvi-lo noite dentro sem parar. Evito ao máximo o momento incómodo

 

– Desculpa, mas tenho de ir à casa de banho

 

um quebra-conversas fatal, mesmo que me sinta como uma comporta de uma barragem prestes a transbordar. A culpa é da cerveja, presença assídua nos nossos encontros. Não sei o que há de especial na cevada, talvez um dom de condutor. É ela que nos liga ainda mais, que nos faz fluir naquela corrente só nossa, com anos de força, anos de união. Um copo com ele é um beijo de lábios, mãos, braços, corpo inteiro.

 

O Daniel deixa-se ficar na poltrona a folhear o manual de jardinagem. Vejo-o daqui, da mesa do café, entre um capuccino e uma tarte de maçã. Não é a primeira vez que trocamos mensagens a esta distância. Na verdade é um hábito que já tenho há algum tempo. Sigo-o sem ele saber, um dia vi-o entrar num teatro e também entrei. Esperei que as luzes se apagassem para me pôr atrás dele e saí antes que se reacendessem.

 

Sei aquele perfume de cor sem nunca o ter provado. O amor platónico é o mais duradouro, este já vai em cinco anos. Conhecemo-nos na apresentação de um livro de um amigo comum. Estávamos lado a lado

 

– Olá, prazer, sou a Isabel

 

e lado a lado ficámos no jantar que se seguiu. Ao fim de cinco horas sentia que o conhecia. Ao fim de cinco dias senti que o queria. Ao fim de cinco meses senti que o amava. Ao fim de cinco anos ainda não sinto que ele me ame.

 

Acabei o capuccino e a tarte. O Daniel arrumou o manual de jardinagem no saco, agora espreita a capa do romance, dura como o coração dele. Envio-lhe mais uma mensagem

 

– O que me dizes de anteciparmos o copo para hoje?

 

e avanço na direcção dele. Sento-me na outra poltrona. Queria ser um livro, para que ele me pegasse e folheasse até ao fim. Queria ser uma canção, para lhe sussurrar ao ouvido que o amo. Mas ele nem repara que ali estou. Pega no telemóvel para me responder

 

– Hoje não posso. Estou numa reunião que vai prolongar-se até tarde

 

e tudo se desfaz, tudo se apaga ao fim de cinco segundos, o tempo que demoro a ler a mensagem.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar