#13 Culpa

Numa rua estão trinta pessoas. Uma delas já violou e matou. As outras não fazem ideia. No tribunal lavou a cara em lágrimas, mas a vergonha não saiu.


– A culpa é do meu pai.


Camionista, fazia-se à estrada e à bebida. Quando não batia na mulher sobrava para o filho. Primeiro foi o cinto, depois piorou. Cabeçadas na parede, murros, um saco de pancada. Fonseca fez-se homem assim, a sentir na pele a crueldade de quem o criou.


– A culpa foi sempre do meu pai


que nem queria saber dos estudos dele. As únicas notas que lhe interessavam vinham dos discos de heavy metal que ouvia no camião e em casa. O filho Fonseca vivia na realidade do pai Fonseca, mas nela era apenas um acessório sem utilidade para lá das cargas de pancada. Uma vez, por alturas do Natal, arriscou pedir-lhe uns carrinhos de brincar. A prenda foi mais uma tareia.


As feridas na cara. As nódoas negras nos braços e nas pernas. As reacções a quente quando outro rapaz se metia com ele


– Repete lá isso. Repete, vá! Repete! Olha qu’eu dou cabo de ti!


A juíza também pediu para repetir. Não eram as ameaças aos miúdos que lhe interessavam, mas o filme da noite em que aquilo aconteceu. Fonseca levantou-se do banco do réu, respirou fundo


– A culpa de tudo isto foi, é e será sempre do meu pai


num prólogo que também é epílogo, numa causa feita consequência. Contou, com todos os detalhes, a forma como apanhou a primeira mulher


– Junto à casa de banho de um bar


como se esforçou para que ninguém percebesse


– Pus-lhe uma mordaça na boca


como ela reagiu


– Ainda me deu uma cotovelada na costela, mas não conseguiu evitar.


Violou-a e deixou-a estendida no chão. Saiu. Rua à esquerda, escadas em frente, mais uma rua à esquerda, número quarenta. Encostada à porta, uma mulher


– Sensual, que qualquer homem deseja.


Foi o problema ele. Desejo de um lado, repugnância do outro. Persistência versus medo. A submissão à força. E desta vez


– Foi mesmo ali, na rua. Estava escuro, por isso nem me preocupei.


Bêbedo e com dois crimes no bolso, faltava-lhe fechar a trilogia, que completou na casa onde cresceu. Entrou, pai no sofá, faca na cozinha, Fonseca atrás de Fonseca. Lâmina no peito, um banho de sangue, um último adeus


– A culpa é tua


antes de ligar à polícia e entregar-se. Disse logo onde estavam as três vítimas, o que lhes fizera. Esperou sentado no sofá, ao lado do pai. Houvesse ali algemas e ter-se-ia prendido logo a si próprio.


A juíza já sabia o que fazer, Fonseca o que esperar. Cela. Três metros por três. Uma clausura de vinte cinco anos reduzida a dezoito por bom comportamento. Saiu há dois meses, um homem novo, purificado. Reabilitado, como a sociedade deseja.


Arranjou um casaco azul de um clube inglês de futebol, tem o jornal desportivo debaixo do braço e um emprego: arrumar


– Pode vir à vontade. É isso mesmo, só mais um bocadinho, ‘tá bom, tá bom!


e desarrumar

– Aguente, aguente. Agora, sim, força, força. Pronto, está feito. Faça boa viagem!


os carrinhos de brincar que o pai nunca lhe deu.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar