#12 Paixão

Uma paragem de autocarro de frente para um café. No segundo andar, três raparigas chinesas, bonitas, ao contrário dos sons que lhes saem da boca


– Ching-chong-fuao-ding-pao


confusos e cheios de tudo e de nada, como o país de onde vêm. Cada uma num sofá, a que está mais perto da janela mexe no cabelo, penteia-o com os dedos. Cantarola a música que ecoa pela sala, um piano a divagar pelo jazz de braço dado com um saxofone.


Barulho, encontrões, estudantes e turistas. Vicente tem os fones nos ouvidos, isolado em si mesmo, à espera do autocarro para casa. Vê a chinesa dos cabelos pela janela do café e apaixona-se. Um autocarro, dois autocarros, três autocarros passam, nenhum é o dele. A vista desimpede-se de novo, mas a rapariga já não está à janela.


É a quinta vez que Vicente se apaixona hoje.


– Tu tens é muito amor para dar


brincam os amigos sem perceber o que está em causa. A loira da tatuagem no pescoço no supermercado. A baixinha das tranças no comboio. A inglesa de sardas na rua. A funcionária da caixa na livraria. A chinesa dos cabelos no café. São cinco rastilhos para um coração em dinamite. Cinco fragmentos de um puzzle de paixões com milhares de peças.


– Viver assim é sufocante


explica-lhes Vicente. E há dias piores, quando chega a ser uma por hora, até mais. Algumas consumam-se, meio caminho andado para acabarem. E logo aparecem outras. É assim desde que namorada o trocou pelo italiano de Génova


– Um deus do amor


dito por ela, não foi ele que inventou, no dia em que se separaram, porque


– Tu nunca te apaixonaste de verdade


insistiu, para não guardar a culpa, que nem é dela mas dos ventos que a levaram ao seu novo deus e que, na cabeça dela, o próprio Vicente soprou. Ele, concentrado na televisão, depressa se apaixonou por uma actriz francesa num filme do canal dois. Desde então foram três mil quatrocentas e noventa e oito vezes que o calor subiu e desceu pelo semáforo do amor, agora verde.

 


Verde é a cor preferida de Catarina. De preferência escuro, como o quarto de onde raramente sai. Uma luz débil num candeeiro de pé. Uma manta sobre as pernas. Uma certeza assumida ao telefone


– Não me apanham outra vez numa destas

e pontuada pela banda sonora de um choro compassado. “Uma destas”, sinónimo de desgosto de amor. A amiga dir-lhe-á


– O homem certo vai aparecer um dia, quando menos esperares, para te fazer feliz. Vais ver


como sempre fazem as amigas, mesmo sabendo que ela pode acabar sozinha. O escuro, o telefone, o choro, a dúvida no meio da certeza. Outra certeza entre a dúvida


– Também não vale a pena chorar mais por ele


que é um frio a gelar o coração para travar a dor. Catarina inunda-se de uma imunidade que veio para ficar. Luz acesa, manta guardada, telefone desligado. É hora de sair à rua.


Um jardim. Pássaros, relva, bancos. Um casal de meia idade sentado num deles, de pedra. Ela passa-lhe a mão pela testa, sobe pela cabeça despida de pêlos


– És o meu carequinha


e as bochechas dele avermelham-se, o pescoço desaparece envergonhado no tronco


– Não digas essas coisas aqui, amor.


Catarina acompanha-os pelo canto do olho enquanto passa. Um bolo numa mão, um sumo na outra. Uma dentada, um gole. Mais jardim, mais casais, um parque de estacionamento. Num carro um homem discute ao telemóvel. Mão a bater no volante, a gesticular, a falar sozinha. O motor ligado e as luzes acesas, sinais de que a conversa lhe travou a marcha. Noutro automóvel um rapaz e uma rapariga beijam-se. Ele, condutor, terá pouco mais de 18 anos. Ela, mais nova, pede-lhe para guiar um pouco


– Ninguém vê


em vão, o carro é da mãe e se há problemas ela nunca mais lho empresta.


Uma passagem subterrânea. Pessoas vão e vêm. Numa ponta um pintor vende imagens da cidade. Eléctricos, monumentos, ruas. A parede é a exposição. Do outro lado um barbudo sentado, viola ao colo, saco aberto. Toca uma melodia de quatro acordes, os únicos que sabe. Catarina vê-o, tira uma moeda do bolso, atira-a ao saco. As barbas abrem-se para um


– Obrigado e felicidades


e logo se fecham conforme ela se afasta. Vicente desce as escadas, compra um quadro, caminha na direcção oposta.

Uma melodia. Uma pintura. Um músico. Um pintor. Um ao lado do outro. Catarina pela esquerda, Vicente pela direita. Ela apaixona-se, ele ignora-a.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história