#11 Beco
Uma rua de Lisboa. Escadas. Um beco. À janela um velho, debruçado no parapeito. Cá fora um miúdo, sentado no chão. Dois telemóveis. De um sai música, um rapper a destilar ódio contra a sociedade. Do outro uma voz, miúda como ele. Uma discussão entre namorados, feia como o beco.
– Tens dez minutos para vir aqui. Vens ou não vens? É que se não vieres nem vale a pena apareceres mais à minha frente. Nunca mais. Ai não vens, é isso?
O tom de voz a subir, o nível do conteúdo a descer. A partir daqui há insultos e ameaças, até um
– Se descubro que andas com outro gajo parto-te a boca toda, sua porca.
O velho assiste à cena. Abana a cabeça, chama a mulher
– Ó Maria, vem cá ver isto.
e mexe no aparelho do ouvido, não vá dar-se o caso de estar a ouvir mal. A Maria dele ganha espaço junto à janela e também abana a cabeça
– Onde é que já se viu isto? Que falta de respeito, que falta de respeito.
e já são dois a abanar a cabeça, dois pêndulos sincronizados, da esquerda para direita, da direita para esquerda.
O rapper esgota os argumentos, repete o refrão até à exaustão. No miúdo ainda há corda para mais. Desce às catacumbas da maldade humana, desenterra as últimas injúrias e um desejo
– Eu quero é que tu morras.
O velho boquiaberto, a Maria dele benze-se. O miúdo repara neles, achara-se sem público durante todo aquele espectáculo. Tem novos alvos, cospe a ira como uma cobra venenosa
– Qu’é-que vocês querem, pá? Nunca viram?
Dedo do meio levantado, os outros encolhidos. O miúdo contra os velhos. À janela já só está ele, a mulher não aguentou a ofensa e recolheu-se lá dentro. É ele quem combate a insolência, o atrevimento.
– Ó meu menino, põe-te mas é a andar daqui para fora, não tarda chamo a polícia. Não tens o direito de incomodar os mais velhos, que querem descansar. Muito menos nesses termos!
Eis que sobe as escadas a miúda do telefone, de fato de treino no corpo e gorro na cabeça. O namorado atira-se a ela
– Ah, afinal vieste! Eu sabia que ias mudar de ideias
e dá-lhe uma chapada, em cheio na bochecha, agora vermelha do sangue a aquecer. Da janela para a sala, o velho pega no telefone. Roda o disco duas vezes para o um, uma para o dois.
– Estou, boa tarde, há um rapaz aqui no beco a bater na namorada. Façam alguma coisa, por favor.
Enquanto isso o miúdo já lhe dá outra chapada
– Para o outro lado não ficar a rir
desta vez mais forte, desta vez mais sentida. A miúda curva-se, chora, morde a camisola de raiva. Fosse capaz disso e agora era ela quem o matava.
As paixões de miúdos são as mais intensas de todas. E também as mais fugazes. Os extremos tocam-se, vão do amor à morte em segundos. São carros de alta cilindrada a disparar dos zero aos cem até bater contra uma parede porque não são bem conduzidos. A parede está aqui, neste beco, ao pé do velho da janela. Ao pé dos polícias que agora entram e agarram o miúdo. Ao pé do telemóvel, de onde sai a voz do rapper, que mudou de tema, de registo e agora diz
– O amor é fogo, o amor mata.