#28 Verbo

Duas cadeiras. Dois pratos. Dois copos. Dois pares de garfos. Dois pares de facas. Dois pares de colheres. Dois guardanapos. Uma frigideira. Um tacho. Um homem. Uma carne ressequida e reaquecida. Um arroz de cimento com bolinhas amarelas, outrora ervilhas verdes. Um homem. Uma toalha bordada. Um coração descosido.

 

Uma cama. Um cobertor. Dois lençóis. Duas almofadas. Uma enfermeira. Um médico. Uma mulher. Uma maternidade. Um parto forçado. Dois bebés. Quatro pés. Quatro pernas. Dois rabos. Duas barrigas. Quatro braços. Três mãos. E uma mulher. Um coração empenhado.

 

O amor. Um velho homem. Um serão a só. Mil serões a só. Uma vida ainda mais só desde aquilo. Um cancro. Um monstro numa alma tão bela. A destruição nela. A miséria nele. A rotina igual, as cadeiras e os pratos e os copos e os garfos e as facas e as colheres e os guardanapos e a frigideira e o tacho. E a carne e o arroz, sempre a mesma ementa.

 

O amor. Uma jovem mulher. Uma cama e dois berços. Uma obra perfeita e uma obra inacabada. Bochechas gordas e rosadas. Um nada diferentes. A mão, só aquela mão. Um tudo iguais. O amor, só aquele amor. Uma mulher, uma mãe, uma arca de afectos. Os olhares mesquinhos dos outros. As reacções indignadas dela. A emoção da razão na razão da emoção.

 

O encontro. O homem e três batas brancas à volta dele. Uma lista infindável de exames. Uma saúde resistente. Um adeus, um até à próxima, daqui a seis meses. Rua, um autocarro, um lugar à janela na zona vermelha, a zona reservada.

 

O encontro. A mulher e as lojas de roupa para bebé. Uma volta, duas voltas, três voltas. Um passeio caro mas necessário. Um carrinho para dois, agora também com camisolinhas e calcinhas e meiinhas e sapatinhos e tudo inho. Rua, um autocarro sem lugares vazios.

 

A ligação. O homem em pé. A mão no ombro da mulher. O lugar à janela, na zona vermelha, livre. O sorriso nela, o conforto pelo gesto nele. O choro nos bebés. A atenção dos passageiros no autocarro. O olhar dele. O cancro. O monstro. A destruição. O passado ali, no presente. Os gémeos dele, o cancro também neles. O cancro e o monstro e a destruição ainda maiores, a dobrar.

 

A ligação. A mulher no banco vermelho. O cuidado com os bebés. A ternura pelo velho homem de pé. A lembrança de outro velho homem, do pai. O exercício de imaginação e adivinhação na cabeça dela. O desenho do passado dele. Reformado do exército, um palpite distante da realidade. Ainda funcionário das finanças, na verdade.

 

O adeus. O homem com o dedo no botão. A luz do stop. Travagem, um desequilíbrio. Tudo normal outra vez. Portas abertas, pernas para fora do autocarro. Um aceno através do vidro. A cabeça no chão. Um pé, outro pé. O horizonte. O motor, o fumo, os pneus. O autocarro.

 

O adeus. A mulher com duas chupetas, uma para cada gémeo. O choro de um, o riso de outro. Uma sinfonia de emoções. As chupetas nas bocas. O silêncio. O homem de saída. Uma festa dela nele antes da travagem e do desequilíbrio e das portas abertas e das pernas fora. O aceno. A reacção dos bebés. Um de chupeta caída no colo, um soluço. O outro também sem chupeta, cinco dedos a abanar no ar de um lado, um pedaço de braço do outro, a primeira palavra pela boca

 

– Mão

 

para uma lágrima solta e um verbo conjugado na cara da mãe. Amo-te.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar