#18 Crise

Pão e sopa é o almoço. Um pai e uma mãe. Uma criança de doze anos, outra de oito. Um bebé de dez meses.

 

– Temos pão e sopa

 

o anúncio da ementa. A família distribui-se pela curva de uma mesa redonda, feita de uma madeira já degradada. O pão está seco, é de véspera. Da sopa vem um travo azedo, culpa dos dias que o panelão já leva no frigorífico.

 

– A fábrica da Porvanstra vai fechar, 600 trabalhadores perdem os seus postos de trabalho

 

é a frase de abertura no telejornal. A notícia carrega de amargura a refeição. Silêncio, só a televisão no fundo. O pão fica mais rançoso, a sopa intragável. A mãe olha para o pai, o pai para a mãe, o filho mais velho

 

– Não quero comer isto

 

a do meio

 

– Não há outra coisa?

 

o bebé

 

– Buááááááá

 

e a mãe chora com ele. O pai tem o coração nas mãos, as mãos na cabeça, a revolta na boca

 

– E agora? E agora? O que vamos fazer?

 

A carne é cara, o peixe também. Uma carcaça para cada um e um caldo, mais água que legumes. O pai desempregado, a mãe sem emprego. Com sorte um subsídio, dois subsídios, sempre uma casa para sustentar. A pão e sopa, a pão e sopa.

 

Ainda há duas horas o pai, esticado no sofá, perdia os olhos na televisão, esquecia os ouvidos nas séries e nos anúncios. Agora está na rua e tem uma mala pela frente. Roupas amarrotadas, um de muitos novelos de vida que deveria caber ali dentro. Ao pé um carro, velho como a mesa redonda. O primeiro aviso veio acompanhado pela ameaça e logo pela expulsão. Um três em um. Só assim

 

– Esta casa está penhorada. Os senhores vão ter de abandonar o apartamento

 

um tiro no peito, uma faca a rodar no coração, sem tempo para reacções, sem tempo para alternativas. Um subsídio pouco durou, o outro nunca chegou. A mãe leva os três filhos para casa da avó

 

– Obrigado, mãe, é só até isto acalmar

 

lá come-se pão e sopa e um pedaço de queijo. O pão sabe a fresco, a sopa parece acabada de fazer e o queijo saído da vaca directamente para casa. É ilusão, o mais velho pressente

 

– Isto só vai piorar, não é, avó?

 

a do meio só mastiga

 

– Nham nham nham

 

o bebé chora

 

– Buááááááá

 

mas agora porque a mãe não está ali. A avó tem o sorriso branco e a pele branca e o cabelo branco. Tudo é branco nela, as paredes da casa, os móveis da cozinha, até os pratos onde os meninos comem pão e sopa e um pedaço de queijo.

 

A mãe ao pé do pai, o pai abraça a mãe. O tecto é baixo, o espaço curto, as camas não são bem camas, são bancos que de tão perros ficam a meio caminho, nem vertical nem horizontal, é uma diagonal que se atravessa e não os deixa descansar.

 

O carro estacionado, sem combustível. A vida, o que coube dela, estacionada lá dentro. O desespero desenha-lhes um plano, a fome dá-lhe forma real. Entram num supermercado, vêem a carne que há meses não comem, o peixe cujo sabor deixaram de conhecer. O desejo, depois o medo. No fim, saem sem pagar. Mas só trazem dois pedaços de pão e uma sopa empacotada.

 

Em casa da avó, o filho mais velho

 

– Onde está o pai? E a mãe?

 

a do meio

 

– Tenho tantas saudades deles

 

o bebé

 

– Buááááááá

 

e os pais na esquadra, a explicar o roubo. Pão e sopa foi o jantar.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar | ver comentários (1)