#15 Avião
Numa fila estão mais de cem pessoas. Malas, sacos, jornais, aparelhos electrónicos. Uma a uma mostram um pedaço rectangular de papel e um caderno de carimbos ou um pequeno cartão. É uma porta de embarque no aeroporto para mais um voo. Um pé no avião e um
– Bom dia
que muitas vezes soa a forçado, vindo de quem faz dos bons dias, dos chás, cafés e o que deseja beber um modo de vida. A hospedeira Paula esforça-se, tenta dar um ar natural à saudação. Às vezes até puxa um dos pés atrás, numa ligeira vénia, que leva o esforço para o lado do ridículo. Está ainda no início da carreira, longe dos vinte e um anos de profissão que a colega Manuela, mais comedida e até sisuda, transporta pelos ares.
– Bom dia
dirão os passageiros, nas mais variadas línguas. Uns, como a hospedeira Paula, carregam na simpatia. Outros, como Xavier, primam pelo oposto. Xavier é um homem muito grande, que no dia-a-dia curva a cabeça para entrar no autocarro ou no metro. No avião passa-se o mesmo, razão para a falta de animação. Tem pela frente uma viagem de três horas
– Uma sessão de tortura
numa visão própria do que aí vem. Penúltima fila, entre uma grávida e um rapaz que parece ainda mais grávido. Pior era impossível. Xavier esquece a má disposição e põe o seu melhor sorriso e
– Desculpe, posso mudar para as filas das saídas de emergência?
na direcção da hospedeira Paula
– Vou ver o que consigo fazer
com o pé atrás, uma ligeira vénia, novo momento ridículo. A grávida e o mais grávido com olhares reprovadores. Xavier a desesperar. A hospedeira Paula volta
– Venha comigo, por favor
agora sem pé e sem vénia, porque o gigante já está atrás dela, mas a mostrar os dentes todos, perfeitos, da cor do avião e das nuvens que os esperam lá em cima. Lugar à janela, mais um palmo de espaço. É um analgésico natural para uma dor que ia nas pernas e que em breve o assaltaria por inteiro.
Pessoas comem, pessoas dormem. Lê-se, vê-se, ouve-se. Xavier estuda um documento no computador. Ao lado dele um aviso
– Saída
outro
– Abertura de emergência
e um terceiro
– Remova a tampa
para os casos de catástrofe iminente, que só acontecem nos filmes e nas notícias de desastres aéreos. Momentos quase sempre insignificantes para quem está longe, pés na terra, cabeça onde calhar. Xavier ignora os avisos, conhece o esquema de cor.
Onze mil e quinhentos metros de altura. Setecentos e setenta e sete quilómetros por hora. Sessenta e um graus celsius negativos. Um poço de ar, um suspiro colectivo. Outro poço, um nervoso miudinho a crescer de intensidade. Um aviso do comandante
– Estamos numa zona de forte turbulência, apertem por favor os vossos cintos
e a hospedeira Paula ainda a sorrir, ainda mais ridícula de tão desapropriado esforço. Xavier continua agarrado ao computador. Espera que passe a agitação para chamá-la
– Pode trazer-me um copo de vinho, se faz favor?
só para ver aquele teatro mais uma vez. Copo cheio, cinco segundos depois já vazio. Desliga e guarda o computador, põe a bolsa debaixo do assento. Olha para os avisos, demora-se a ler, letra a letra, até parece ter medo de chegar ao fim
– S-a-í-d-a
depois
– A-b-e-r-t-u-r-a d-e e-m-e-r-g-ê-n-c-i-a
e por fim
– R-e-m-o-v-a a t-a-m-p-a
antes de levar a mão ao puxador e abrir a porta. O céu suga-o, depois ao resto dos passageiros. Num instante desaparecem todos. Num instante Xavier acorda e percebe que estava a dormir. O analgésico fez efeito.