#14 Destino

A luz do dia a irromper pela janela. Um quarto numa casa dos subúrbios. Os lençóis e o cobertor há muito acordados. Um corpo de metro e sessenta e cinco rebola de uma ponta à outra da cama de dois metros e dez. É um sonho ou um pesadelo, tem sido assim desde que aquilo aconteceu. Bruxas, acidentes, a mãe a aparecer-lhe

 

– Ainda estou aqui, Joana

 

num aqui que já não é aqui, é lá longe, debaixo da terra ou acima do céu. Um aqui que apenas se aproxima de olhos fechados, mente aberta. Um aqui que acaba no despertar, hoje atrasado

 

– Merda, são nove e vinte

 

pois devia ter acontecido há quase uma hora. Falta-lhe o tempo para os dez minutos de banho com água a escaldar. Para o pequeno-almoço com fruta, queijo, pão e café. Para a roupa escolhida a dedo. A eternidade dos sonhos avançou pelo dia dos mortais para agitar o rumo de Joana.

 

Trânsito. Cigarro. Mais trânsito, mais cigarro. O primeiro desvio da rotina dá-lhe tosse e nervos. É um teste de stresse com nota negativa, um pára-arranca na paciência que ao fim de meia hora pára e já não arranca. À espera dela, no ateliê, uma carta sem remetente. Lá dentro uma proposta para emigrar

 

– Tivemos conhecimento do seu trabalho e queremo-la aqui o mais depressa possível

 

simples e directa. Oferecem um bilhete para Paris, um salário razoável, uma experiência relevante. Pedem entrega e desprendimento total. No fundo, a proposta que Joana sempre quis. A proposta que nunca tinha aparecido.

 

Logo hoje, oito meses depois daquilo. Logo hoje, que acordou com a mãe ali tão perto. A cabeça diz que sim

 

– Tenho mesmo de ir

 

o coração pede-lhe que diga

 

– Não, a minha família precisa de mim

 

mesmo que só lhe reste uma mãe enterrada, personagem de sonhos e pesadelos. Agora não consegue responder, o melhor é esperar um dia ou dois para as ideias assentarem.

 

Mãos ao trabalho num dia pouco produtivo. As memórias a flutuar no espaço que costuma pertencer à inspiração. Assim não saem belos edifícios, o motivo da carta de Paris. Joana está presa na dúvida, amarrada ao presente do passado. Afinal a mãe não foi para longe, continua aqui, pergunta-lhe

 

– Queres lanchar, filha?

 

como fazia enquanto ela brincava com as bonecas. E minutos depois havia pão, havia queijo, havia os bolinhos de manteiga, tão bons que pareciam eternos, tão bons que o sabor ficava na língua, depois na cabeça, para no fim se guardar no coração.

 

Pastelaria. Bolinhos de manteiga. Não são os mesmos, estes não passam a barreira da língua, perdem-se no caminho até ao coração. Falta-lhes o toque final, talvez aquelas palavras

 

– Toma, Joana, foram feitos com amor e carinho

 

que são receita de mãe. Na pastelaria as caras dos empregados fecham-se e o amor hiberna. É tudo frio, como o frigorífico onde jazem os bolos de aniversário, como será o tempo debaixo de terra. Lá não há bolinhos, muito menos amor e carinho.

 

Uma dúzia. É mais do que suficiente. Rua, uma brisa, um dia contra a corrente da rotina. Um dia que não estava já escrito, despertar, banho, pequeno-almoço, carro, trânsito, trabalho, carro, trânsito, jantar, deitar. Um dia que foi mais que um dia, foi uma viagem ao passado com escala no futuro. Um dia que foi mais e menos que os bolinhos de manteiga. Um dia que começou com uma aparição

 

– Ainda estou aqui, Joana

 

e acabou com outra

 

– Não me deixes, Joana

 

agora acordada, olhos abertos, polegar e indicador a beliscar a pele, é mesmo verdade. Logo hoje, oito meses depois daquilo. Logo hoje, que recebeu a carta com a proposta de emprego. Logo hoje, que tem de tomar uma decisão. Sente a mãe morta mas viva, ausente mas presente. E sente que precisa dela, precisam uma da outra, dos bolinhos de manteiga com o toque final que só à mãe pertence. Porque mastiga os da pastelaria e sabem-lhe a outra coisa, estranha, incerta, sabem à Paris que não conhece. E está decidido

 

– Eu fico, mãe

 

no calor de um coração cheio. Cheio de tudo, cheio de nada. Cheio de bolinhos de manteiga, com amor e carinho. Cheio de uma certeza tão certa quanto a imagem da mãe, em sonhos

 

– Não me deixes, Joana

 

tão certa quanto o destino que a fez aparecer logo hoje, o dia que lhe teria mudado a vida. Logo hoje, o dia que lhe mudou mesmo a vida.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar