#07 Voz

 

Baralha as cartas mais uma vez. E outra e outra e outra. O truque só funciona se estiverem bem misturadas. Nas mangas não há nada. Estão arregaçadas, não passam do cotovelo. Deixam à vista os braços, salpicados pelos poucos pêlos brancos que se entrelaçam como arame farpado. Disfarçam mas não escondem a tatuagem, feita em África com mais vontade do que arte. A letra é horrível, embora se perceba o que está escrito

 

“Angola 1961. Com amor.”

 

Na guerra colonial aprendeu a matar sem pestanejar. Um, dois, três, quatro, cinco, sabe lá quantos. Depressa perdeu o ardor que lhe enchia o peito, aquela febre instantânea quando destinava um homem ao vazio eterno em nome de uma disputa à qual fora forçado. Não queria estar lá, não queria ter ficado com a cabeça de um camarada, abatido à sua frente, nas mãos.

 

Em casa deixara uma jovem mulher, de sonhos pendurados na corda bamba. Ela queria filhos, muitos filhos. Tinha nomes pensados, roupas desenhadas, penteados decididos. Tinha tudo pronto, sentia-se preparada. Rezava horas a fio para que o seu homem voltasse vivo. As últimas palavras dele, antes de embarcar, não lhe saíam da cabeça.

 

Eu volto. Prometo. Espera por mim.

 

Mas ele apaixonou-se por África, por Angola e por uma mulata, cujo irmão abatera ainda antes de a conhecer. Nunca foi capaz de o confessar. Conseguiu, sim, engravidá-la enquanto por cá a mulher continuava a lengalenga.

 

Ora, os rapazes vão chamar-se Manuel e Jacinto e as meninas serão Ana Luísa e Maria.

 

O outro nasceu Amílcar. Herdou o nome do pai, entretanto regressado a Portugal. Nunca se conheceram.

 

Agora, o soldado Amílcar tem 70 anos. Não esqueceu a pele negra e macia, o sorriso e o coração aberto da angolana. Também ele sorri quando se lembra dela. Mas nada pode fazer. O Manuel, o Jacinto, a Ana Luísa e a Maria já lhe deram netos. A vida fez-se por cá. A mulher, sempre na ignorância, esperou por ele. Amparou-lhe os traumas, as revoltas, os pesadelos. Juntos construíram a família com que sempre sonharam, mesmo que já nada disto fizesse sentido na cabeça dele.

 

Chegou a desejar a morte. Em Angola, durante uma patrulha, foi atacado com uma bomba. O braço tatuado ficou à beira da amputação. Hoje não quer ouvir falar na guerra. Também não conseguiria, mesmo que o desejasse. A explosão levou-lhe a audição, o choque tirou-lhe a voz. Pensou pegar na espingarda e suicidar-se naquele momento. Mas não foi capaz.

 

Resignado, fechou-se em copas, de mente armada com espadas e paus contra um destino que lhe roubou o ouro dos sonhos. Agarrou-se às cartas. Já em África eram o passatempo preferido dos camaradas. Jogar à batota. Ele preferia manuseá-las com artística destreza, os jogos aborreciam-no. Fazia castelos, descobria truques. Já sem audição nem voz, passou a falar através das cartas. Ou com elas. Dispensava cada vez menos tempo às pessoas.

 

Além da mulher, dos filhos e dos netos, apenas o vê quem aparece no café da aldeia. É lá que está sentado, pronto para o truque. Os miúdos cercam-no à mesa. Gritam de excitação. Amílcar está indiferente ao ambiente. Nem pestaneja, como se voltasse a estar de kalashnikov nas mãos, pronto a matar mais um inimigo. Divide o baralho ao meio, fecha os olhos e pede a uma das crianças para escolher uma carta, decorá-la e pô-la novamente no meio das outras.

 

À primeira acerta. À segunda também. Depois pára, a meio da terceira tentativa. O miúdo, impaciente, esforça-se para não esquecer a carta. Reclama, bate o pé no chão. Amílcar faz-lhe sinal para se aproximar ainda mais. Põe-lhe o quatro de espadas no bolso direito do casaco, diz uma palavra, ao ouvido, pela primeira vez em 50 anos

 

Calma

 

fecha os olhos, recosta-se na cadeira.

 

E morre.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar