#06 Espelho

Para ele a vida é um par de sapatos italianos, desde que sejam o número 41 e não lhe magoem os pés. Se a felicidade se constrói a partir do chão, o melhor é fazê-lo com classe e conforto. O calçado torna-o outra pessoa. Passeia o ar altivo e confiante pela rua. Olha em frente, de queixo levantado, como se buscasse algo lá ao fundo. Segue indiferente aos comentários alheios, aos que lhe chamam maricas ou bicha. Na cabeça dele são todos invejosos, querem imitá-lo mas não conseguem.

 

Em casa, descalço, Filipe é inseguro. O chão parece fugir-lhe debaixo dos pés. Todas as semanas vai buscar livros de auto-ajuda ao centro comercial. Outro dia comprou mais um

 

“Dez passos para os seus olhos espelharem felicidade”

 

dizem as letras gordas na capa. Ainda não lhe tocou e já imagina os passos, um por um. Ele próprio podia escrevê-los. Sabe toda a teoria, compra os livros apenas por descargo de consciência. Mal chega a casa seguem todos o caminho da estante. E a única coisa que ajudam é a acumular pó, que ele nunca limpa

 

– Isso é trabalho de pobre

 

repete quando a mãe lá vai e lhe puxa as orelhas. Desde que se emancipou, aos 22 anos, só se vêem quando ela o visita. O pai recusa o esforço

 

– Ele que venha cá, tenho mais que fazer

 

e por isso não olham um para o outro há meia dúzia de anos. Nada que surpreenda alguma das partes. A relação entre pai e filho nunca foi pacífica. O mais velho, alfaiate de profissão, passou ao descendente o gosto pelos sapatos, pelo bem vestir, pelo aprumo. E a partilha geracional acabou aí. Em tudo o resto são opostos. O pai é conservador, católico inveterado, pouco dado às “manias das novas gerações”. O filho é excêntrico, ateu dos sete costados, apaixonado por gadgets e experiências modernas.

 

Filipe vai no carro, uma caixa de fósforos com rodas. Não passa dos 90 quilómetros por hora. O motor não dá para muito mais e ele também está demasiado ocupado a cantar. Agarra-se ao volante como ao microfone e abraça a actuação. Ignora os condutores que passam e olham, arriscando um acidente por culpa da distracção.

 

O carro é cinzento metalizado, de uma marca com um leão que anda em duas patas. Tem uma mossa do lado direito, acima do pneu da frente, que apareceu

 

– Por azar

 

enquanto fazia de Michael Jackson e cantava assim

 

– I’m starting with the man in the mirror. I’m asking him to change his ways.

 

Distraiu-se a olhar o seu reflexo no retrovisor, a letra assim o exigia. Quando deu por ele já estava a sair da faixa. E, pumba, a roçar, para não dizer bater, na vizinha do lado. Foi o cabo dos trabalhos. Seguro para aqui, seguro para ali, o carro dela para arranjar e ele a pagar.

 

– Tudo por azar.

 

Deixou Michael Jackson para trás. Agora faz de Madonna, que em tempos foi uma virgem tocada pela primeira vez. Só canta, não olha pelo espelho, não vá o diabo tecê-las. Já chega de azares, que o salário de uma revista de moda não chega para tudo e ainda é preciso comprar os livros de auto-ajuda. E os sapatos italianos.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar