#04 Cartão

Artur é um jovem inteligente. Na escola é o melhor aluno, cai nas graças dos professores e de alguns colegas. Também sabe evitar confusões, sempre frequentes na escola do bairro. À saída, os bandos de maltrapilhos de intenções duvidosas têm um certo gosto em escolhê-lo como alvo. Ele antecipa-se, muda de rotinas, altera as rotas. Nunca se deixa apanhar, por isso não o assaltam. Os miúdos da turma dele, menos dados à esperteza, não podem dizer o mesmo. Aparecem em casa a chorar, sem o telemóvel ou a consola portátil.

A idade junta outras características à personalidade de Artur. Torna-se desconfiado, o resultado mais natural da capacidade para ler a mente dos outros. O avô, com quem passa longas tardes a jogar xadrez, tem uma certeza

– Vai para psicólogo, meu filho. Tu tens futuro, tu tens futuro!

o que para ele é ideia sem consistência. Quer ser astronauta e jogador de futebol. Ao mesmo tempo. Demora, mas lá percebe que entre vertigens e claustrofobia já é bom se conseguir entrar num avião. Dos chutos na bola desiste mais depressa, quando os pés se entrelaçam e se sente uma avestruz, de cabeça enfiada na terra.

Agora é um homem crescido. Está no sofá e tem um álbum de fotos ao colo. Percorre cada etapa da sua evolução com atenção. Se demora a identificar um rosto logo aproxima a cara do livro. Às vezes faz ao contrário, é o álbum que vai até ele, para economizar no esforço. Numa fotografia vê um dos maltrapilhos da sua adolescência – Óscar, o Gigante. O cognome dispensa a descrição, a altura não engana.

Antes de avançarmos convém esclarecer um pormenor sobre Artur. Por vezes a inteligência não chega para levar às decisões mais correctas e o rapaz astuto, apesar das notas notáveis, falha na gestão de si próprio. Com a idade cede às tentações da carne. De vaca, de porco, de peru. Até de javali ou girafa, as suas preferidas. Engorda vinte quilos e também ele ganha um cognome: “Artur, o Obeso.”

– Obesa é a tua mãe!

remata entre dentes, como nunca foi capaz com uma bola, ao ouvir o médico insistir no exercício físico e na alimentação saudável, obrigatórias para pessoas como ele, obesas.

É conversa de tolo, homem inteligente não precisa disso, exercita o corpo ao treinar a mente. O sofá, onde estuda a infância, a adolescência e o entretanto, tem nódoas de pizza e muitos papéis; um odor a gordura e um perfume de lavanda. Aqui travam-se batalhas entre a autodeterminação da obesidade e o espírito criativo de uma alma espartilhada.

Artur trabalha sentado neste mesmo sofá, daí os papéis, daí o perfume de lavanda. Escreve cartões de felicitações. Aromáticos. Se houvesse um Nobel desta área, estaria todos os anos na calha para o vencer. Até ao dia em que ganhava mesmo e saía à rua para gritar a tudo e todos

– Obesa é a vossa mãe!

Mas não há Nobel, apenas um patrão que telefona, furioso, porque os cartões são bons mas não óptimos. Na televisão passa um filme sobre um homem como ele, também seria candidato ao prémio, que ama uma mulher chamada Summer e passa quinhentos dias com e sem ela. Artur não tem namorada, apenas uma amiga distante por quem uma vez se disse apaixonado; e Summer para ele é o Verão, que não dura mais do que noventa e cinco dias.

Só sai à quarta e ao domingo, porque a comida nem sempre vem sozinha até casa. O supermercado fica a dois quilómetros. Artur pega no carro, mas não sabe se ainda sabe ou se já não sabe conduzir. Uma vez perde-se, faz cinco quilómetros, estraga o consumo médio do percurso e assim o depósito não dá para um ano inteiro. Tem de ir abastecer. Normalmente vai no Natal, agora ainda é Novembro e já tem de passar pela bomba.

Fica a meio caminho. É negócio de família, gente simpática e humilde que gosta de ajudar. Artur tem por hábito oferecer-lhes um dos seus cartões. Hoje leva dois. O outro é para o homem que espreita aos vidros dos carros

– Boa noite, posso ajudá-lo?

todo curvado porque é muito alto, como as girafas, cuja carne adocicada Artur tanto aprecia.

– É para atestar, por favor.

Tira tampa, põe mangueira, deita gasolina. Uma nota de cinquenta euros, outra de dez, um cartão aromatizado e um

– Obrigado, até à próxima

que só deve acontecer lá para Novembro do ano que vem, na melhor das hipóteses, porque agora não falha no caminho, é sempre em frente, não tem nada que enganar. Da próxima vez Óscar, o Gigante, que agora lê o cartão, vai saber que aquele é Artur, o crânio que nunca conseguiu roubar e que agora lhe confia o depósito do carro e os sessenta euros.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar | ver comentários (1)