#01 Música

A camisa, branca, tem 124 riscas azuis, oito botões cinzentos para sete casas, um bolso aberto e outro fechado. As calças, vincadas, são sedosas, de um preto liso. Os sapatos, da mesma cor, engraxados, têm duas pequenas faixas um pouco mais claras que vão do calcanhar à biqueira. O cabelo, grisalho, mais fino que esparguete, também está impecável, de risco ao lado. Barba feita, creme na cara, dentes lavados, pescoço perfumado. António olha-se ao espelho. Está pronto. Procura o reflexo do seu corpo uma última vez

– Olá, Manuel.

Apaga a luz da casa-de-banho e sai. Pega na pasta de cabedal, que na véspera deixara em cima do banco do corredor. É demasiado pequena para tantos papéis, já à espreita por uma fresta. Abre-a, reorganiza os documentos, rasga o que não interessa

– Com licença.

Diz para o ar, mesmo sozinho em casa. Deita fora o monte de pequenos pedaços de papel. Agora, sim, cabe tudo, arrumado a preceito. Falta um ritual. Percorre o apartamento de uma ponta a outra. Toca duas vezes em cada porta, janela ou móvel. São mais de cinco minutos até terminar a tarefa. Chega à porta da rua e pára, com os pés em cima do tapete florido. Dá meia volta e fecha-se em casa.

Puxa os sapatos, despe as calças, tira a camisa. Veste um pólo vermelho. Agora tem um crocodilo verde encostado ao coração. Escolhe umas calças de ganga e pega num par de ténis novos, de um couro castanho, a atirar para o preto. Agarra outra vez na pasta e corre para a porta.

Está no elevador. Quer olhar-se ao espelho, mas evita ao máximo

– Eu sei que estás aí, Manuel.

Rés-do-chão. Rua. Vira à esquerda e segue em passo apertado. De dez em dez metros corrige o ritmo, para não pisar as linhas que cruzam o passeio. Desce as escadas até ao metro, entra na primeira carruagem, sai duas estações depois.

Primeiro andar de um prédio antigo. Há um cartaz, do tamanho de gente

“António Manuel. Músico perfeccionista, pianista e violinista. Hábil com as notas, melodioso, poderoso. Conta histórias sem abrir a boca, leva-nos numa viagem de sons e sensações. É um dos grandes nomes da música clássica contemporânea. Em Portugal. Na Europa. No mundo.”

O cartaz tem uma foto ampliada de um rosto. António observa-a por um instante

– Estás com bom aspecto, Manuel.

Passa pelo hall e vira logo à direita, fugindo à multidão. Vai para o camarim. Muda de roupa. Veste o fato preto, em frente ao espelho

– Gravata ou laço, Manuel?

Pousa a gravata na mesa. Aperta o laço ao pescoço. Batem à porta. Ouve-se uma mulher do lado de lá

– Está pronto, sr. António?
– Sim, vamos.


e deixa o camarim para trás. Entra na sala de espectáculos, o público aplaude. Senta-se ao piano. Silêncio. Sacode as mãos. Durante hora e meia passa por Mozart e Beethoven, Bach e Wagner, Schubert e Schumman. Também toca composições próprias, como “A Valsa Do Homem Que Não Sabia Viver” e “O Nome De Todos Os Nomes”, ambas escritas por Manuel. Uma ovação de pé, uma vénia para agradecer.

De volta ao camarim, desaperta o laço. A figura do lado de lá do vidro faz a mesma coisa, em sincronia

– Custa-me, dói-me viver assim. Sou apenas um boneco, uma marioneta nas tuas mãos. Tu crias, sonhas. Eu só toco. Porque apareces tantas vezes para me atormentar? Era mais feliz na sombra dos melhores, no meio dos medianos. Porquê, Manuel? Deixa-me ser apenas o António. As pessoas vêem-nos como um só, não sabem a tortura que me trazes, o lento sofrimento que há anos se alastra dentro de mim. Tenho de acabar contigo, não posso.

Parte o espelho ao murro. Crrrssshhh. Enrola a mão ensanguentada numa toalha e sai mesmo assim, ainda de fato. Desta vez vai pela porta dos fundos, não quer ver ninguém. Ignora as dezenas de pessoas que o esperam no hall, desejosas de o saudar.

Desce as escadas até ao metro. Entra na última carruagem. Sai duas estações depois. Vira à direita, segue no limite entre o andar e o correr. Ignora as linhas do passeio. Pisa uma atrás de outra, parece propositado.

Terceiro andar. Casa. Pega no banco do corredor, onde deixara a pasta na véspera, e atira-o contra o espelho da casa-de-banho. Antes de fazer o mesmo no quarto

– Adeus, Manuel.

e parte o espelho que resta.

Desde esse dia não toca, não compõe. Só ouve o que os outros fazem. António matou Manuel para trocar a infeliz grandiosidade pela alegre pequenez. Mas nos jornais continua vivo

“António Manuel arrebatou as mais de duas mil pessoas que assistiram ao último espectáculo com a sua genialidade. Mestre na articulação das obras dos maiores compositores da história, conseguiu ainda elevar as suas próprias criações à dimensão dos nomes eternos da música clássica.”

“Portugal tem um prodígio do tamanho do mundo. António Manuel agraciou-nos com a sua paixão pela música, a devoção ao piano. Diante de uma sala esgotada escreveu-se uma página brilhante da história da arte”

Não lhe interessa, não quer saber. É feliz assim. Agora já nem perde cinco minutos a percorrer o apartamento antes de sair, como aconteceu nos últimos 25 anos.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar | ver comentários (5)