#05 Memória

Estou num quarto. Tem quatro paredes brancas, um tecto alto, com relevo, que converge para um círculo, no centro, com uma cruz. O quarto está fechado por uma porta metálica, a enferrujar-se, com uma faixa de vidro à altura dos olhos de quem tem pelo menos um metro e oitenta. A porta abre-se. Vem uma jovem loira, talvez com vinte anos, muito bonita. Mas traz um ar triste, já com a primeira lágrima a balançar no olho. Abraça-me

– Quem és tu? Porque me abraças?

Não responde. Encosta a cara ao meu ombro esquerdo. Encharca-o como se passasse uns minutos à chuva

– Quem és tu? O que fazes aqui?

E não abre a boca. Não sei de onde veio, porque apareceu aqui. Não me lembro da última vez que recebi visitas. Se calhar nunca as tive desde que cheguei. Para dizer a verdade, também não sei onde estou. Nem quem sou. Outro dia perguntaram-me

– Como está, senhor Joaquim? Melhor?

Deve ser esse o meu nome. Perdi a noção do tempo que já passei aqui. Sei que a parede à minha esquerda tem cinco riscos pretos, já os fixei. À direita há um prego, martelado até se perder na imensidão branca. Não faz mais do que pôr a cabeça de fora, dizer que existe. Ali ao fundo, ao lado da porta, está pintada uma mensagem

“O tempo apenas destrói o que é real”, Jean Grenier

Atrás tenho uma janela. Dá para um pátio onde as crianças da escola brincam. Gostava de ser outra vez criança. Que idade terei agora? Cinquenta? Cinquenta e cinco? Sessenta anos? Sinto-me velho, isso sim. Não tenho espelho, não sei que aspecto tenho. Por dentro estou a desfazer-me, a perder bocados do que já fui. Não sei nada.

Passo horas a olhar pela janela. As crianças vêm e vão. Vejo-as crescer assim. Um dia dei-lhes nomes. O Pedro costuma andar de mão dada com a Sofia. Ele bem que se empoleira para lhe roubar da boca um beijo. Mas ela vira a cabeça e só lhe mostra a cara. É uma chatice. Quando o Pedro não está a ver, a Sofia também dá a mão ao Tiago. E até lhe oferece o que esconde do Pedro. O Tiago cora, solta um risinho e foge.

Estes miúdos fazem-me companhia. Entretanto alguns deles já andaram ou andarão na faculdade, outros para lá devem caminhar. O meu ombro está cada vez mais molhado

– Não chores, menina. Fala comigo.

Ela levanta a cabeça. Olha-me, inunda-me com um azul reluzente. Tenta soltar umas palavras. Primeiro não sai nada, apenas um som imperceptível. Ao segundo esforço supera o tremor

– Há anos que queria vir aqui. Muitas vezes reparei em si, via-o à janela, a observar-nos. Prometi-me visitá-lo, fazer-lhe companhia. Sei que sofre, quero ajudá-lo.

Fico imóvel, como se me amarrassem à cama de ferro, onde à noite tento fintar as insónias para descobrir o sono. Tenho um anjo junto a mim. Obrigado, expulsaste o diabo que me encarcerou neste cubículo e que encarna numas senhoras de bata azul que vêm aqui e dizem

– Senhor Joaquim, está a piorar. Entende o que estamos a dizer?

E, não, não entendo. Elas não me fazem bem, dão-me uns comprimidos que me tiram a vida que resta neste velho corpo. Obrigado, menina, iluminaste a minha existência com esses olhos cheios de céu e de mar. Nunca vou esquecer o teu gesto, mas não posso prender-te aqui comigo. Não posso, não consigo, tens tanto para viver e eu sou só um trapo. Tenho de fazer isto

– Obrigado pela tua visita. Mas eu não estou a sofrer. Até me sinto bem aqui.

Minto com os nove dentes que me restam na boca. Morro aos poucos por imaginar que não conhecerei outro sítio senão este, por sentir que não serei mais do que isto. Pelo contrário, serei cada vez menos até não ser nada, vegetal, cadáver, cinzas.

Ela consente. Abraça-me, deixa-me um beijinho na cara e sai pela porta enferrujada. Sigo-a com o olhar até a figura desaparecer atrás do rectângulo de metal. Desvio-me para a mensagem na parede

“O tempo apenas destrói o que é real”, Jean Grenier

Tenho o ombro encharcado, das lágrimas dela e agora também das minhas. Sei que o tempo vai destruir esta imagem, este momento. Até lá será real, eterno, como a minha solidão.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar