#03 Desilusão

– Porra, não aguento mais.
– Ninguém te obriga a ficar.
– Nem sei porque ainda aqui estou.
– Sei eu. Porque és fraca, uma inútil.


Inês saiu do quarto. Bateu com a porta, branca, de uma madeira chique importada da Ásia. No quarto, iluminado por dois candeeiros de pé, cada um mais caro do que o outro, ficou Luís. Sozinho, coça a barba mal semeada. Está sentado na cama, que há pouco servira de campo de batalha com a mulher. Minutos antes tinham unido os corpos ali mesmo. Os lençóis ainda estão quentes, suados. A cabeça dele acelera, oscila entre uma raiva contida e um interminável pesar.

“Como chegámos a isto, como acabámos assim?”, repete mentalmente. Estão casados há oito anos. Tudo começou com uma bebedeira, numa festa de faculdade. Ele, finalista de engenharia civil; ela, aluna de medicina. Ele, audaz, viu-a e disse aos amigos

– Só páro quando for minha.

Ela, altiva, não lhe ligou nenhuma. A vida era uma grande bata branca com corações, pulmões, fígados, rins e pâncreas a saltar de um lado para o outro. Queria ser cirurgiã, os homens eram assunto secundário. Demorou cinco minutos a mudar de ideias. Ele, confiante, atacou

– Olá, sou o teu futuro marido.
– Ai és?
– Podes não acreditar. A partir de agora és minha.


Acordaram nus, lado a lado, na cama dele. Era um quarto alugado, a cinco minutos a pé do Técnico. A química fora imediata. Álcool a mais de um lado, em excesso do outro. Inês esquecera por umas horas os órgãos dos outros e pensou nela. Mentira. Não pensou em nada, já tinha o cérebro mergulhado em álcool. Entregou-se a Luís, de corpo e com alma. O sol da manhã trouxe-lhe uma dor de cabeça e uma dúvida.

– E agora?
– Namoramos. Eu disse que eras minha.


Três anos depois casaram. Ele, engenheiro, saltou da faculdade para uma grande construtora. Ela, ainda aspirante a cirurgiã, seguia no demorado corredor da especialidade. Compraram casa, uma vivenda na linha com vista para o mar. Optaram pelas suaves prestações anunciadas na televisão, não havia pressa em pagar tudo. Encheram-na de móveis de milhares de euros, de electrodomésticos XXL. O que Luís não podia pagar chegava à mesma, com o patrocínio dos abastados pais de Inês.

Quando ela, já cirurgiã, passou a ter dinheiro de sobra, viajaram. Foram aos quatro cantos do mundo. Se fossem cinco, seis, sete, teriam visitado todos à mesma. Acumularam milhares de objectos, espalharam-nos pela moradia, agora um pequeno museu, uma colecção de histórias dentro da sua própria história. Bibelôs, roupas, pratos, plantas, anéis, pulseiras. Caixas, caixinhas, caixotes. E o mais importante: uma estátua de Makemake, o criador da humanidade e deus da fertilidade para os nativos da ilha de Páscoa. Ele não queria, ela insistiu.

Inês escondia a razão. Era genética, na família dela mais de metade das mulheres não conseguia ter filhos. Tinha medo de passar pelo mesmo. Luís queria dois. Um menino e uma menina. Ou dois meninos. Ou duas meninas. Queria dois.

Tentaram. Voltaram a tentar. Repetiram. Filhos, nem vê-los. O medo crescia em Inês. Falou com três amigos, especialistas na área. Aconselharam-na. Fez um tratamento às escondidas de Luís. Um dia ele perguntou-lhe

– Há algum problema contigo?
– Não, amor, está tudo bem.


Não estava. Não havia vida dentro dela. Outro dia ele puxa novamente pelo assunto

– Sei que comigo está tudo ok. Por isso só podes ser tu...

Ela começa a chorar

– Não consigo, não consigo, não consigo. Desculpa.

Para ele estava fora de questão adoptar. “Um filho de outros? Nunca!” Se tinha uma mulher, era ela que devia carregar essa responsabilidade. Luís tornou-se agressivo. Pressionava-a

– A culpa é toda tua.

e ela inundava-se de lágrimas, escorregava em cada gota que lhe caía dos olhos. Largou o emprego, pediu baixa psicológica. De vez em quando ainda tentavam. Era forçado, sem amor, sem paixão. Uniam-se e desuniam-se como uma chave numa fechadura. A porta abria-se, depois fechava-se. E gritavam de raiva. Ele pensava e repetia baixinho

– Como chegámos a isto, como acabámos assim?

Sabia que a culpa era dele, do orgulho, da intransigência. Mas não conseguia voltar atrás. Inês, farta, vai ao fundo da mágoa

– Porra, não aguento mais.
– Ninguém te obriga a ficar.
– Nem sei porque ainda aqui estou.
– Sei eu. Porque és fraca, uma inútil.


Inês saiu do quarto. Bateu com a porta, branca, a da madeira chique importada da Ásia. Foi embora, mas levou a estátua com ela.

publicado por Rui Catalão às 00:00 | link da história | comentar